sexta-feira, 1 de junho de 2012

A função do leitor. Ou: fazendo bater


            Às vezes eu inicio uma aula lendo. Algo bem aleatório mesmo. Acho super válido. (Tornar a leitura um hábito, algo mecânico e repetitivo, não considero interessante). Gosto da leitura pela leitura. Sem cobranças posteriores. Quem pegar, pegou. Quem não pegar, numa próxima pode ser. Ou não. Toda leitura é questão de tempo.
Fazendo bater. Acho que é isso que acontece quando eu levo um livro para os meus alunos. Para ler com os meus alunos. Acho que rola dentro de mim, quase no inconsciente, um querer que eles se batam. Os livros e os alunos. Que eles colidam, entrem em choque mesmo. Em todos os sentidos. Porque a leitura precisa marcar. Porque a vida precisa ser marcada pelas leituras. Senão não é leitura. Senão não pode ser vida.
Dias desses, li isto daqui:

" A função do leitor

Quando Lucia Peláez era pequena, leu um romance escondida. Leu aos pedaços, noite após noite, ocultando o livro debaixo do travesseiro. Lucia tinha roubado o romance da biblioteca de cedro onde seu tio guardava os livros preferidos.
Muito caminhou Lucia, enquanto passavam-se os anos. Na busca de fantasmas caminhou pelos rochedos sobre o rio Antióquia, e na busca de gente caminhou pelas ruas das cidades violentas.
Muito caminhou Lucia, e ao longo de seu caminhar ia sempre acompanhada pelos ecos daquelas vozes distantes que ela tinha escutado, com seus olhos, na infância.
Lucia não tornou a ler aquele livro. Não o reconheceria mais. O livro cresceu tanto dentro dela que agora é outro, agora é dela".

(Eduardo Galeano, página 20 de "O livro dos abraços").

Daí você lê, fecha o livro, olha pr’aquelas carinhas miúdas que devolvem o olhar para você como que dizendo "tá, e daí?". E então você devolve a pergunta "tá, e daí?". E o melhor de tudo é o silêncio que fica. Essencial para se tocar a aula adiante. Até quem sabe, no meio dela, ser interpelado por uma pergunta: "Quem inventou a escada, professor, queria subir ou queria descer?". 
E aí, eu acho, você sente que muita coisa nessa vida vale toda uma existência.
A leitura e toda sua individualidade poderiam abrir espaço para a leitura e toda sua possibilidade de ser vivida-compartilhada, não é mesmo? Ler com os ouvidos e ler com os demais são práticas que se escondem no cotidiano, inclusive de uma escola, de uma sala de aula. E que pedem para ser encontradas, minuciosamente, nos cantos de solidão pelas quais se espreitam.
Mergulho, então, nos livros e nas histórias que me levaram a subir e a descer escadas e a querer torná-los lidos por mais pessoas. Em alguns muitos que hoje em dia leio para a guriada, sentindo que eles (os livros) podem ser caminhos para eles (os alunos) dentro deles mesmos. Podem ser portas nas quais eles entrem e façam moradia. Em uma bolsa amarela, por exemplo, em um sofá estampado, em uma distância entre as coisas, em um livro invisível.
Umas das minhas maiores conquistas tem se tornado recorrente. É ouvir toda semana dos alunos, assim que eu entro em sala, a pergunta: Vai ler pra gente hoje, professor? A pergunta por si só basta. Mas a ela e à resposta que dou, vem acompanhado um comentário tão maravilhoso quanto. Se digo “não, hoje não será possível, há bastante coisas a produzirmos, conteúdo e afins”, o desalentado “aaaah” quase me faz mudar de ideia e esquecer do planejado para aquela aula. Se digo “sim, e será agora”, o rápido movimento que a turma faz de logo silenciar para ouvir o que tenho a ler me faz pensar que só aquilo já basta. Às vezes o ato de ler tem uma importância menor do que os movimentos oriundos de tal prática. A vida significando pelas arestas. Das margens para o centro. E voltando às margens.
Não se pode andar só pra frente.
Um texto precisa do leitor para existir. A leitura precisa ser compartilhada para existir.

Ítalo Puccini