sexta-feira, 3 de agosto de 2012

O começo que nasce para morrer


As coisas só começam porque um dia terminarão.
Eu gosto desta frase, apesar de não gostar da palavra coisa. Penso-a (a frase, não a coisa) apontando para direções que são várias: início, fim e meio do mundo; início, fim e meio da vida; início, fim e meio de um relacionamento; início, fim e meio de um livro. Há um meio depois do começo e do fim, assim como entre.
A tendência de um começo é a morte instantânea.
Linkando com a literatura, temos: o começo de um texto é aquilo que mais é renegado pelo escritor. É a substância que brota para ser jogada fora. É o apêndice. Nascido para morrer. E mesmo aquele começo – de texto ou qualquer outro começo - que se apresenta a todos como definitivo, aquele começo que ficou definido como o começo de algo, está entregue à mudança constante. Não à morte, mas à mudança. Pois ele nem sempre será lido como o começo que se propôs a ser. Por que não ser lido como uma possibilidade de final, então? Será daí que todo fim é um começo?, uma vez que cada nova leitura pode ser a morte e o enterro da leitura anterior, sugada antes de não mais existir.
Um começo de livro marcante pode ser este: "Na primavera de 1998, Bluma Lennon comprou numa livraria do Soho um velho exemplar dos Poemas de Emily Dickinson, e ao chegar ao segundo poema, na primeira esquina, foi atropelada por um automóvel". É do livro "A casa de papel", do argentino Carlos Maria Domínguez. Ou este: "Nu e cru, eis o facto: apareceu um pénis decepado, em plena Estrada Nacional, à entrada da vila de Tizangara. Era um sexo avulso e avultado. Os habitantes relampejaram-se em face do achado. Vieram todos, de todo lado. Uma roda de gente se engordou em redor da coisa. Também eu me cheguei, parada nas fileiras mais traseiras, mais posto que exposto. Avisado estou: atrás é onde melhor se vê e menos se é visto. Certo é o ditado: se a agulha cai no poço muitos espreitam, mas poucos descem a buscá-la". Do livro “O último voo do flamingo”, do moçambicano Mia Couto. Dois simples começos como estes, que apresentam ações pontuais em tão poucas linhas, que delineiam uma miríade de caminhos na cabeça do sujeito-leitor – que poderão ser alcançados ou não, afinal, cada leitura é uma leitura.
Há, ainda, o começo de “Bonsai”, do chileno Alejandro Zambra: “No final ela morre e ele fica sozinho, ainda que na verdade ele já tivesse ficado sozinho muitos anos antes da morte dela, de Emilia. Digamos que ela se chama ou se chamava Emilia e que ele se chama, se chamava e continua se chamando Julio. Julio e Emilia. No final, Emilia morre e Julio não morre. O resto é literatura:”.
Dois pontos. Como que dizendo ‘agora vou contar a história’. E que o leitor deixe de lado a birra infantil de ‘ah, por favor, não me conte o final’. Há literaturas que se sustentam pelo seu durante. Há literaturas que encantam só pelo começo. Há literaturas que decepcionam principalmente no final.
[Um bom começo também pode ser um caminho para o abismo da decepção].
O começo como morte é a oportunidade de não se estranhar muito o novo começo, o recomeço. E de não sentir muito aquele que não mais existe, porque nada nem ninguém vem para substituir algo ou alguém, mas para acrescentar, para existir a partir daquilo/daquele que não mais.
Sendo assim, peço licença ao leitor – e também o convido – para, nas duas próximas semanas, acompanhar neste espaço começos de textos/histórias/livros marcantes para alguns sujeitos-leitores. Duas croniquetas feitas só de começos. Sem final, sem meio. Fragmentos, estilhaços, possibilidades de start para novas leituras.
A conferir.

Ítalo Puccini