As coisas só começam porque um dia
terminarão.
Eu gosto desta frase, apesar de não gostar
da palavra coisa. Penso-a (a frase, não a coisa) apontando para direções que
são várias: início, fim e meio do mundo; início, fim e meio da vida; início,
fim e meio de um relacionamento; início, fim e meio de um livro. Há um meio depois
do começo e do fim, assim como entre.
A tendência de um começo é a morte
instantânea.
Linkando com a literatura, temos: o começo
de um texto é aquilo que mais é renegado pelo escritor. É a substância que
brota para ser jogada fora. É o apêndice. Nascido para morrer. E mesmo aquele começo – de texto ou qualquer outro
começo - que se apresenta a todos como definitivo, aquele começo que ficou
definido como o começo de algo, está entregue à mudança constante. Não à morte,
mas à mudança. Pois ele nem sempre será lido como o começo que se propôs a ser.
Por que não ser lido como uma possibilidade de final, então? Será daí que todo
fim é um começo?, uma vez que cada nova leitura pode ser a morte e o enterro da
leitura anterior, sugada antes de não mais existir.
Um começo de livro marcante pode ser este:
"Na primavera de 1998, Bluma Lennon comprou numa livraria do Soho um velho
exemplar dos Poemas de Emily Dickinson, e ao chegar ao segundo poema, na
primeira esquina, foi atropelada por um automóvel". É do livro "A
casa de papel", do argentino Carlos Maria Domínguez. Ou este: "Nu e
cru, eis o facto: apareceu um pénis decepado, em plena Estrada Nacional ,
à entrada da vila de Tizangara. Era um sexo avulso e avultado. Os habitantes
relampejaram-se em face do achado. Vieram todos, de todo lado. Uma roda de
gente se engordou em redor da coisa. Também eu me cheguei, parada nas fileiras
mais traseiras, mais posto que exposto. Avisado estou: atrás é onde melhor se
vê e menos se é visto. Certo é o ditado: se a agulha cai no poço muitos
espreitam, mas poucos descem a buscá-la". Do livro “O último voo do
flamingo”, do moçambicano Mia Couto. Dois simples começos como estes, que
apresentam ações pontuais em tão poucas linhas, que delineiam uma miríade de
caminhos na cabeça do sujeito-leitor – que poderão ser alcançados ou não,
afinal, cada leitura é uma leitura.
Há, ainda, o começo de “Bonsai”, do chileno
Alejandro Zambra: “No final ela morre e ele fica sozinho, ainda que na verdade
ele já tivesse ficado sozinho muitos anos antes da morte dela, de Emilia.
Digamos que ela se chama ou se chamava Emilia e que ele se chama, se chamava e
continua se chamando Julio. Julio e Emilia. No final, Emilia morre e Julio não
morre. O resto é literatura:”.
Dois pontos. Como que dizendo ‘agora vou
contar a história’. E que o leitor deixe de lado a birra infantil de ‘ah, por
favor, não me conte o final’. Há literaturas que se sustentam pelo seu durante.
Há literaturas que encantam só pelo começo. Há literaturas que decepcionam
principalmente no final.
[Um bom começo também pode ser um caminho
para o abismo da decepção].
O começo como morte é a oportunidade de não
se estranhar muito o novo começo, o recomeço. E de não sentir muito aquele que
não mais existe, porque nada nem ninguém vem para substituir algo ou alguém,
mas para acrescentar, para existir a partir daquilo/daquele que não mais.
Sendo assim, peço licença ao leitor – e
também o convido – para, nas duas próximas semanas, acompanhar neste espaço
começos de textos/histórias/livros marcantes para alguns sujeitos-leitores. Duas
croniquetas feitas só de começos. Sem final, sem meio. Fragmentos, estilhaços,
possibilidades de start para novas leituras.
A conferir.
Ítalo Puccini
Ítalo Puccini