sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Uma croniqueta feita de começos

            Conforme eu havia prometido, serão duas croniquetas feitas de marcantes-começos-de-livros-para-sujeitos-leitores. Pedi a alguns amigos que me enviassem seus marcantes-começos-de-livros, com breves palavras sobre.
Vamos a eles: (E vá a eles, leitor. Não precisa correr atrás destes livros. Apenas chegue a eles, quem sabe).
Enzo Potel me enviou a primeira frase do conto “Sem lugar para você, meu amor”, de Eudora Welty, que abre o livro “The Bride of the Innisfallen and other stories”: “Eles não se conheciam, assim como não conheciam o lugar em que, lado a lado, estavam sentados para almoçar – os grupos de amigos se juntaram de uma hora para outra quando alguém reconheceu outro alguém no Galatoire. Era um domingo de verão – naquelas horas durante a tarde que parecem desconhecer a existência do tempo em New Orleans”. E as palavras dele sobre a mesma foram as seguintes: “Eu gosto do peso que têm aquelas quatro primeiras palavras antes da vírgula; o leitor precisa carregar aquela noção até o final do conto para entender o quão mágico foi o que esse homem e essa mulher se propuseram a fazer. E, ainda nesse primeiro parágrafo, a cidade de New Orleans ganha um tom de fábula, o que vai ser muito importante para narrar uma experiência que beira quase o nada, o tempo todo, até depois do fim”.
Amanda Corrêa, por sua vez, recorreu à Clarice Lispector e o começo de “A paixão segundo G.H.”: “– estou procurando, estou procurando. Estou tentando entender. Tentando dar a alguém o que vivi e não sei a quem, mas não quero ficar com o que vivi. Não sei o que fazer do que vivi, tenho medo dessa desorganização profunda. Não confio no que me aconteceu. Aconteceu-me alguma coisa que eu, pelo fato de não a saber como viver, vivi uma outra? A isso quereria chamar desorganização, e teria a segurança de me aventurar, porque saberia depois para onde voltar: para a organização anterior. A isso prefiro chamar desorganização, pois não quero me confirmar no que vivi – na confirmação de mim eu perderia o mundo como eu o tinha, e sei que não tenho capacidade para outro”. E o quanto este começo a marcou: “É quase um clichê falar em Clarice agora, mas essa leitura foi muito intensa para mim. Discutimos o livro na aula da Taiza e, na mesma noite, eu comecei a ler. Cara, li num soco. Numa noite eu o devorei. Fiquei tomada por essa leitura alguns dias”.
Para Clarice também foi Monica Saraiva, escolhendo o começo de “Água Viva”: “É com uma alegria tão profunda. É uma tal aleluia. Aleluia, grito eu, aleluia que se funde com o mais escuro uivo humano da dor de separação mas é grito de felicidade diabólica. Porque ninguém me prende mais. Continuo com capacidade de raciocínio – já estudei matemática que é a loucura do raciocínio – mas agora quero o plasma – quero me alimentar diretamente da placenta. Tenho um pouco de medo: medo ainda de me entregar pois o próximo instante é o desconhecido. O próximo instante é feito por mim? ou se faz sozinho? Fazemo-lo juntos com a respiração. E com uma desenvoltura de toureiro na arena”. E, justificando: “Porque o livro se justifica no primeiro parágrafo. “Felicidade diabólica” é a pura água viva. É exaltação, é êxtase. Queima. Alimentar-se da placenta é profano. Faz queimar também, feito o bufar do tal touro, do qual não há medo”.
            E, fechando os começos, por ora, Eduardo Silveira mandou-me o de “Foi assim”, de “Natalia Ginzburg: "Disse-lhe: - Diga-me a verdade - e ele disse: - Que verdade? - E desenhava rapidamente algo no seu livrinho de apontamentos e me mostrou o que era: um trem comprido com uma densa nuvem de fumaça preta e ele, que se debruçava na janela e acenava com o lenço. Atirei em seus olhos”. Dizendo, também recordando um dos começos da croniqueta da semana passada: “Gosto por vários motivos. Lembrando o começo de 'Bonsai', este revela logo no começo um dos principais fatos. O maravilhoso é que o fato de saber como termina não tira nem um pouco nossa curiosidade, porque há outras perguntas em aberto. Mas gosto principalmente pela beleza: do trem, imagem sempre bonita, e pelo contraste da paz dele com a raiva dela: por que alguém que faz um desenho tão amável merece levar um tiro nos olhos?”.
            Assim está feito. Quatro convites aos leitores. E mais quatro ou tantos na semana que vem.

Ítalo Puccini