sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Os últimos começos


            (Título horrível, eu sei. Porém, justifico-o: por ora, assim será. Uma pausa nesta – parece-me: boa – ideia de começos de livros; para não cansar o leitor, a quem agora apresento novas sugestões de livros, vindas de outros amigos):
            A Francine Hellmann enviou o começo de “O estrangeiro”, do Albert Camus: "Hoje, mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo: ‘Sua mãe faleceu. Enterro amanhã. Sentidos pêsames’. Isso não esclarece nada. Talvez tenha sido ontem. O asilo de velhos fica em Morengo, a oitenta quilômetros de Argel. Assim posso velar o corpo e estar de volta amanhã à noite. Pedi dois dias de licença a meu patrão e, com uma desculpa destas, ele não podia recusar. Mas não estava com um ar muito satisfeito. Cheguei mesmo a dizer-lhe: ‘A culpa não é minha.’”. Com os seguintes fortes dizeres: “Reli alguns começos dos meus livros favoritos e escolhi esse porque o Camus é foda e porque a realidade dói. Sem máscaras, sem romances, às vezes a pessoa não dá a mínima para a morte da mãe e chega mesmo a achar entendiante”. Complementando: “Mas confesso que fiquei em dúvida quando recoloquei os olhos neste”: “Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo.", de Gabriel García Márquez em “Cem anos de solidão”, e explicando: “Não o escolhi porque o achei quase clichê, tanto quanto conhecer Machu Picchu ou amar loucamente. Eu queria fazer as duas coisas e a minha literatura entrega, mas não conte para ninguém (que seja desinteressante)”. 
            E, uma vez que à Franci foi permitido citar dois começos, merece o mesmo direito a Mônica Saraiva, que enviou, além daquele de “Água Viva”, na crônica passada, este de “Divã”, da Martha Medeiros: “Sou eu que começo? Não sei bem o que dizer sobre mim. Não me sinto uma mulher como as outras. Por exemplo, odeio falar sobre crianças, empregadas e liquidações. Tenho vontade de cometer haraquiri quando me convidam para um chá de fraldas e me sinto esquisita à beça usando um lencinho amarrado no pescoço. Mas segui todos os mandamentos de uma boa menina: brinquei de boneca, tive medo do escuro e fiquei nervosa com o primeiro beijo. Quem me vê caminhando na rua, de salto alto e delineador, jura que sou tão feminina quanto as outras: ninguém desconfia do meu hermafroditismo cerebral. Adoro massas cinzentas, detesto cor-de-rosa. Penso como um homem, mas sinto como mulher. Não me considero vítima de nada. Sou autoritária, teimosa e um verdadeiro desastre na cozinha. Peça para eu arrumar uma cama e estrague meu dia. Vida doméstica é para os gatos”. Assim argumentando a segunda escolha: “Porque a Mercedes – a do livro, que é bem diferente da do filme – às vezes é o que eu sou, às vezes o que eu quero ser e, em outras, o que eu mais abomino. Odiar falar sobre crianças e sonhar ter uma pra mim. Ser um pouco homem, porque não preciso deles para o que eu posso fazer só. Preciso deles quando a vontade é além. Porque não consigo fincar raízes na vida doméstica e, ao mesmo tempo, sou um gato, se bem afagada. Porque ela se expõe logo assim, de cara, no primeiro parágrafo. Porque ela está na frente do analista. E porque ela sabe que esse discurso te desconstrói diante do espelho. Porque ela quer sempre os contrários”.
            E, fechando o ‘pacote-de-duas-sugestões’, Eder Alex propôs dois começos. O primeiro: "Quando ele acordava na floresta no escuro e no frio da noite, estendia o braço para tocar a criança adormecida ao seu lado. Noites escuras para além da escuridão e cada um dos dias mais cinzentos do que o anterior. Como o início de um glaucoma frio que apagava progressivamente o mundo. Sua mão subia e descia de leve com cada preciosa respiração", do livro “A estrada”, de Cormac McCarthy, uma vez que “as orações curtas e a secura na linguagem criam um aparente distanciamento entre narrador e personagens que acho maravilhoso na literatura (não é um filho, é ‘a criança’). Se alguma emoção surge dali, não é porque o narrador me disse pra sentir, ele informa o que acontece e eu construo a poesia aqui em mim. Nesse caso, acho bela a imagem de um pai que acorda à noite para conferir se o filho ainda está respirando. É humano, é amor, e o mundo parece querer o contrário de tudo. Quero continuar a leitura para saber quem vai perder”. E o segundo: "Se você não destruiu esta carta no momento em que identificou a letra no envelope, é sinal que a curiosidade é até mais forte do que o ódio. Ou que o ódio necessita de combustível novo. Agora você empalidece, comprimindo suas mandíbulas de lobo, até os lábios desaparecerem, e joga-se sobre estas linhas para saber o que quero de você, depois de sete anos de absoluto silêncio entre nós", do livro “A caixa preta”, do israelense Amós Oz, porque este livro “lança o leitor já de cara na história. Pois, além do trabalho minucioso na lapidação das frases, faz com que a gente se sinta invadindo a correspondência de alguém, sim, somos um bando de cretinos curiosos. Algo está muito errado, há muito ódio e também sua semente primeira, o amor. Por que a vida dessas parece tão devastada? Quero ler as outras cartas”. 
            E que você, leitor, queira ler estes e outros livros.

Ítalo Puccini