(Título
horrível, eu sei. Porém, justifico-o: por ora, assim será. Uma pausa nesta –
parece-me: boa – ideia de começos de livros; para não cansar o leitor, a quem
agora apresento novas sugestões de livros, vindas de outros amigos):
A Francine
Hellmann enviou o começo de “O estrangeiro”, do Albert Camus: "Hoje, mamãe
morreu. Ou talvez ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo: ‘Sua mãe
faleceu. Enterro amanhã. Sentidos pêsames’. Isso não esclarece nada. Talvez
tenha sido ontem. O asilo de velhos fica em Morengo, a oitenta quilômetros de
Argel. Assim posso velar o corpo e estar de volta amanhã à noite. Pedi dois
dias de licença a meu patrão e, com uma desculpa destas, ele não podia recusar.
Mas não estava com um ar muito satisfeito. Cheguei mesmo a dizer-lhe: ‘A culpa
não é minha.’”. Com os seguintes fortes dizeres: “Reli alguns começos dos meus
livros favoritos e escolhi esse porque o Camus é foda e porque a realidade dói.
Sem máscaras, sem romances, às vezes a pessoa não dá a mínima para a morte da
mãe e chega mesmo a achar entendiante”. Complementando: “Mas confesso que
fiquei em dúvida quando recoloquei os olhos neste”: “Muitos anos depois, diante
do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela
tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo.", de Gabriel
García Márquez em “Cem anos de solidão”, e explicando: “Não o escolhi porque o
achei quase clichê, tanto quanto conhecer Machu Picchu ou amar loucamente. Eu
queria fazer as duas coisas e a minha literatura entrega, mas não conte para
ninguém (que seja desinteressante)”.
E,
uma vez que à Franci foi permitido citar dois começos, merece o mesmo direito a
Mônica Saraiva, que enviou, além daquele de “Água Viva”, na crônica passada,
este de “Divã”, da Martha Medeiros: “Sou eu que começo? Não
sei bem o que dizer sobre mim. Não me sinto uma mulher como as outras. Por
exemplo, odeio falar sobre crianças, empregadas e liquidações. Tenho vontade de
cometer haraquiri quando me convidam para um chá de fraldas e me sinto
esquisita à beça usando um lencinho amarrado no pescoço. Mas segui todos os
mandamentos de uma boa menina: brinquei de boneca, tive medo do escuro e fiquei
nervosa com o primeiro beijo. Quem me vê caminhando na rua, de salto alto e
delineador, jura que sou tão feminina quanto as outras: ninguém desconfia do
meu hermafroditismo cerebral. Adoro massas cinzentas, detesto cor-de-rosa.
Penso como um homem, mas sinto como mulher. Não me considero vítima de nada. Sou
autoritária, teimosa e um verdadeiro desastre na cozinha. Peça para eu arrumar
uma cama e estrague meu dia. Vida doméstica é para os gatos”. Assim
argumentando a segunda escolha: “Porque
a Mercedes – a do livro, que é bem diferente da do filme – às vezes é o que eu
sou, às vezes o que eu quero ser e, em outras, o que eu mais abomino. Odiar
falar sobre crianças e sonhar ter uma pra mim. Ser um pouco homem, porque não
preciso deles para o que eu posso fazer só. Preciso deles quando a vontade é
além. Porque não consigo fincar raízes na vida doméstica e, ao mesmo tempo, sou
um gato, se bem afagada. Porque ela se expõe logo assim, de cara, no primeiro
parágrafo. Porque ela está na frente do analista. E porque ela sabe que esse
discurso te desconstrói diante do espelho. Porque ela quer sempre os
contrários”.
E,
fechando o ‘pacote-de-duas-sugestões’, Eder Alex propôs dois começos. O
primeiro: "Quando ele acordava na
floresta no escuro e no frio da noite, estendia o braço para tocar a criança
adormecida ao seu lado. Noites escuras para além da escuridão e cada um dos
dias mais cinzentos do que o anterior. Como o início de um glaucoma frio que
apagava progressivamente o mundo. Sua mão subia e descia de leve com cada
preciosa respiração", do livro “A estrada”, de Cormac McCarthy, uma vez
que “as orações curtas e a secura na linguagem criam um aparente distanciamento
entre narrador e personagens que acho maravilhoso na literatura (não é um
filho, é ‘a criança’). Se alguma emoção surge dali, não é porque o narrador me
disse pra sentir, ele informa o que acontece e eu construo a poesia aqui em
mim. Nesse caso, acho bela a imagem de um pai que acorda à noite para conferir
se o filho ainda está respirando. É humano, é amor, e o mundo parece querer o
contrário de tudo. Quero continuar a leitura para saber quem vai perder”. E o
segundo: "Se você não destruiu esta carta no momento em que identificou a
letra no envelope, é sinal que a curiosidade é até mais forte do que o ódio. Ou
que o ódio necessita de combustível novo. Agora você empalidece, comprimindo
suas mandíbulas de lobo, até os lábios desaparecerem, e joga-se sobre estas
linhas para saber o que quero de você, depois de sete anos de absoluto silêncio
entre nós", do livro “A caixa preta”, do israelense Amós Oz, porque este
livro “lança o leitor já de cara na história. Pois, além do trabalho minucioso
na lapidação das frases, faz com que a gente se sinta invadindo a
correspondência de alguém, sim, somos um bando de cretinos curiosos. Algo está
muito errado, há muito ódio e também sua semente primeira, o amor. Por que a vida
dessas parece tão devastada? Quero ler as outras cartas”.
E que você, leitor, queira ler estes
e outros livros.
Ítalo Puccini
Ítalo Puccini