poesia
em forma líquida
deve
ser bebida ou respirada
em
momentos com vagar.
(Ondjaki,
“Tu que viste tantas estrelas”)
Mais
uma croniqueta-resenha. Com a sua devida licença, leitor.
Ondjaki
é Angolano. Nascido em Luanda, tem apenas 35 anos, e alguns belos livros
publicados. Tenho leitura de dois deles, “Há prendizajens com o xão” e
“Avódezanove e o segrdo do soviético”. O prosador e poeta domina a linguagem da
forma mais apropriada que se pode ter: reinventa-a. ressignifica-a.
Começa,
por exemplo, seu livro de poemas “Há prendizajens com o xão - o segredo húmido
da lesma & outras descoisas” (Pallas, 2011) dedicando algumas
palavras-poema a Manoel de Barros, em quem claramente se inspirou para o
fazimento deste livro. Diz Ondjaki: “apetece-me chãonhe-ser-me”. É isto
ressignificar a palavra. É criar verbo, é criar ação a partir dela. É fazer os
animais se verbarem: “libélulas avoam danças / aranhas cospem tranças; /
morcegos ralham noites / ursos linguam potes”.
O
chão é o elemento poético de Ondjaki. É no chão que se encontram as formigas – insetos
que apresentam “um medonho desconhecimento para egos”. Um chão promovido à
almofada, “mas ele sobre nós”. É ao aprendermos a olhar para o chão que podemos
aprender a sermos. A chão-nhe-sermos. É do chão que vem o cheiro da terra que
rejuvenesce a humanidade. E aprendizagem “é a palavra que, ela sim, ramifica e
desramifica uma pessoa; ela enlaça, abraça; mastiga um alguém cuspindo-o a si
mesmo, tudo para novas géneses pessoais”.
Prendizajem é saber que
“a mosca exagera em / amizades com a merda”. É saber que, de tanto falar, é
preciso saber ouvir: “para ser grilo / há que se ter algibeiras / onde também
caibam silêncios”. Brilhar por desanonimato. É saber que “ser folha é / nem
sempre estar para sol”. E que “bonito é que ela respira”. Porque nem sempre –
ou quase nunca – o que a gente espera é o que acontece: “uma mosca parada /
pode incomodar uma pessoa”.
É do chão que vem o
mundo. Mas “para assistir ao nascimento de uma palavra convém esperar dentro do
chão”.
Ou
correndo por ele. Chutando-o. Rastejando-o. Criando rastros. É o que fazem os
meninos de “Avódezanove e o segredo dos soviéticos” (Companhia das letras, 2009)
– meninos estes que muito me lembraram os meninos-capitães da areia, do Jorge
Amado: porque ingênuos-mas-espertos; porque justiceiros-mas-amorosos.
Pelas
ruas poeirentas da PraiadoBispo, em Luanda – capital da Angola – é que brincam
meninos como o EspumaDoMar, Pinduca e Charlita, sem contar o próprio menino-narrador.
Brincam em meio a uma agonia: a iminência de se mudarem, forçadamente, dali de
onde nasceram e desde então vivem, uma vez que os soviéticos estão a construir
um mausoléu que abrigará o corpo do ex-presidente AgostinhoNeto: uma obra
descomunal, que parece um enorme foguete de concreto. O que não falta neste
cenário de livro são culturas variadas, portugueses, cubanos e soviéticos
(reflexo de uma Angola recém-independente). Luanda, um lugar onde “as pessoas
morrem sem avisar. Que falta de educação!”, como bem observava a avóCatarina.
Não
bastasse o contexto político-social tão bem apresentado, Ondjaki envolve o
leitor em uma linguagem que faz assim, abraça: “O vento deve ter uma casa no
tão-longe e está sempre a tentar levar as nuvens para a casa dele, mas isso é
uma coisa que eu penso sozinho sem contar a ninguém, porque outras crianças
podem me chamar de chanfru e os mais-velhos podem querer me dar remédios para
ver se fico bom da cabeça”.
Uma
história toda que “foi num tempo que os mais-velhos chamam de antigamente”.
Afinal, “o inchaço do coração / facilita o despalavrear. / a liberdade pode
advir / de uma veia”.
Ítalo Puccini
Ítalo Puccini