sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Poesia é esse negócio que faz assim, ó




poesia em forma líquida
deve ser bebida ou respirada
em momentos com vagar.
(Ondjaki, “Tu que viste tantas estrelas”)

            Mais uma croniqueta-resenha. Com a sua devida licença, leitor.
            Ondjaki é Angolano. Nascido em Luanda, tem apenas 35 anos, e alguns belos livros publicados. Tenho leitura de dois deles, “Há prendizajens com o xão” e “Avódezanove e o segrdo do soviético”. O prosador e poeta domina a linguagem da forma mais apropriada que se pode ter: reinventa-a. ressignifica-a.
            Começa, por exemplo, seu livro de poemas “Há prendizajens com o xão - o segredo húmido da lesma & outras descoisas” (Pallas, 2011) dedicando algumas palavras-poema a Manoel de Barros, em quem claramente se inspirou para o fazimento deste livro. Diz Ondjaki: “apetece-me chãonhe-ser-me”. É isto ressignificar a palavra. É criar verbo, é criar ação a partir dela. É fazer os animais se verbarem: “libélulas avoam danças / aranhas cospem tranças; / morcegos ralham noites / ursos linguam potes”.
            O chão é o elemento poético de Ondjaki. É no chão que se encontram as formigas – insetos que apresentam “um medonho desconhecimento para egos”. Um chão promovido à almofada, “mas ele sobre nós”. É ao aprendermos a olhar para o chão que podemos aprender a sermos. A chão-nhe-sermos. É do chão que vem o cheiro da terra que rejuvenesce a humanidade. E aprendizagem “é a palavra que, ela sim, ramifica e desramifica uma pessoa; ela enlaça, abraça; mastiga um alguém cuspindo-o a si mesmo, tudo para novas géneses pessoais”.
Prendizajem é saber que “a mosca exagera em / amizades com a merda”. É saber que, de tanto falar, é preciso saber ouvir: “para ser grilo / há que se ter algibeiras / onde também caibam silêncios”. Brilhar por desanonimato. É saber que “ser folha é / nem sempre estar para sol”. E que “bonito é que ela respira”. Porque nem sempre – ou quase nunca – o que a gente espera é o que acontece: “uma mosca parada / pode incomodar uma pessoa”.
É do chão que vem o mundo. Mas “para assistir ao nascimento de uma palavra convém esperar dentro do chão”. 
            Ou correndo por ele. Chutando-o. Rastejando-o. Criando rastros. É o que fazem os meninos de “Avódezanove e o segredo dos soviéticos” (Companhia das letras, 2009) – meninos estes que muito me lembraram os meninos-capitães da areia, do Jorge Amado: porque ingênuos-mas-espertos; porque justiceiros-mas-amorosos.
            Pelas ruas poeirentas da PraiadoBispo, em Luanda – capital da Angola – é que brincam meninos como o EspumaDoMar, Pinduca e Charlita, sem contar o próprio menino-narrador. Brincam em meio a uma agonia: a iminência de se mudarem, forçadamente, dali de onde nasceram e desde então vivem, uma vez que os soviéticos estão a construir um mausoléu que abrigará o corpo do ex-presidente AgostinhoNeto: uma obra descomunal, que parece um enorme foguete de concreto. O que não falta neste cenário de livro são culturas variadas, portugueses, cubanos e soviéticos (reflexo de uma Angola recém-independente). Luanda, um lugar onde “as pessoas morrem sem avisar. Que falta de educação!”, como bem observava a avóCatarina.
            Não bastasse o contexto político-social tão bem apresentado, Ondjaki envolve o leitor em uma linguagem que faz assim, abraça: “O vento deve ter uma casa no tão-longe e está sempre a tentar levar as nuvens para a casa dele, mas isso é uma coisa que eu penso sozinho sem contar a ninguém, porque outras crianças podem me chamar de chanfru e os mais-velhos podem querer me dar remédios para ver se fico bom da cabeça”.
            Uma história toda que “foi num tempo que os mais-velhos chamam de antigamente”. Afinal, “o inchaço do coração / facilita o despalavrear. / a liberdade pode advir / de uma veia”.

Ítalo Puccini